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Poemas vibradores de Roberto Piva

03 de julho de 2025
Roberto Piva (Coleção Roberto Piva/Acervo IMS)

O número 17 da revista Pícaro, de julho/agosto de 1988, traz um retrato fragmentário e fiel do poeta Roberto Piva. Quem assina a matéria, intitulada “Hóspede incômodo”, é o jornalista Walter de Sousa Junior, que desde as primeiras linhas já descreve o tom insólito do encontro, ou melhor, dos (des)encontros, porque em duas tentativas malsucedidas de entrevistá-lo o gravador havia registrado apenas ruído, “um ruído nervoso e incômodo, como se fosse impossível reproduzir a voz de um demônio vivo”, justifica Walter.

Piva, então com 50 anos, já consagrado no meio literário pelos livros publicados desde a década de 1960 – Paranoia (1963), Piazzas (1964), Abra os olhos e diga ah (1975), Coxas (1979), 20 poemas com brócoli (1981), Quizumba (1983) e Antologia poética (1985) – aparece como de hábito: transgressivo, provocador, com frases aforísticas e bem-humoradas do tipo “Cristo é Dionísios de ressaca” ou “a poesia-concreta, logo logo, vai ser bordada em fronhas e lençois para serem distribuídos às mocinhas virgens nos conventos”. Aqui, especificamente, pragueja contra o viés publicitário do movimento levado a cabo pelo trio de poetas e tradutores Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, cuja poesia, de pendor gráfico e formalista, se figurava na época como antípoda da marginalidade conjurada por seu projeto poético.

Para Piva, a matéria-prima da poesia era a vida posta à prova no corpo. É verdadeiro e bastante repetido seu dito: “Não existe poesia experimental sem vida experimental”. Apesar disso, era um leitor voraz de “Artaud, Pasolini, Genet, Rimbaud, Bataille, Baudelaire”, todos, de natureza igual, artistas e pensadores do corpo na dimensão mais baixa da matéria e de suas impurezas.

Daí encontrarmos, na reportagem da revista Pícaro, sob o nome de “estilhaços poéticos de uma paixão mal resolvida”, trechos de falas de Piva, que, apesar do problema técnico com o gravador, foram salvos por Walter. Entre eles, um em que o poeta radicaliza seu gesto: “minha poesia são restos da orgia que ficaram escritos sem qualquer modificação ou correção”.

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A eliminação – a propósito, impossível – da distância entre vida e escrita aparece aqui, ainda que não tenha sido sua intenção, como a obsessão, o sintoma, a utopia do poeta, qual seja: a inclinação mística de apreender na escrita o instante evanescente do êxtase, de colocar em palavras uma experiência sempre arredia à simbolização, pois guardada hermeticamente no corpo sensual.

É justo dessa impossibilidade, contudo, que nasce a invenção poética. Uma vez que, no limite, a experiência mística não pode ser descrita com palavras, o poeta precisa inventá-las; esse é o argumento do historiador e psicanalista francês Michel de Certeau no livro A fábula mística. Piva segue declaradamente essa linhagem e, admirador de mitos e ritos, escreve, de dentro do som aliciador dos atabaques, palavras cuja matéria táctil vibra e toca o corpo do leitor, em cópula delirante.

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A publicação em questão pertence ao acervo do poeta guardado pelo Instituto Moreira Salles e pode ser consultada mediante agendamento.

Bruno Cosentino, integrante da área de Literatura do Instituto Moreira Salles, é doutor em literatura brasileira pela UFRJ, cantor e compositor. É também um dos editores da revista de crítica musical Polivox.