A Sessão INDETERMINAÇÕES: Grande Otelo, enigma das contradições está em cartaz em julho no cinema do IMS Paulista e IMS Poços.
A estatura pequenina esconde uma imensidão. O sorriso largo, a qualquer momento, pode se transformar num olhar vazio, numa revolta que não aparece como explosão, mas como feitiço. A incontornável negrura, superfície de possíveis capturas, revira os significados, confunde quem está do lado de cá. Enigmático, desafia as traduções dos sentimentos do mundo com a poética polissêmica de seu corpo, contraditoriamente, ao longo de décadas, sendo inscrito e rasurando a história de um país em constante destruição/transformação. Se, então, por meio de seus personagens e de sua biografia, interpreta e documenta o Brasil, assim como o próprio cinema, é sempre fortuito e revelador olhar de novo, de novo, de novo, e mais uma vez, para ti, Grande Otelo.
Menos do que uma ação memorialista, a sessão Grande Otelo, enigma das contradições investe em adentrar nos contornos de malícia, tracejos interpretativos e galanteios cheios de intenção das performances do multiartista Bastiãozinho, Otelo Gonçalves, Pequeno Otelo, Sebastião Prata, Otelo Queiroz, The Great Otelo, consagrado nos palcos e nas telas como Grande Otelo. Não se trata de revelar um segredo; afinal, não há o que se desvelar. Ao contrário, perseguimos os gestos e as grafias de seu trabalho atoral com o desejo de perguntar: como seu repertório criativo poderia alargar e estremecer as concepções desde já estabelecidas sobre o cinema negro no Brasil

Combinamos, assim, o curta-metragem Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo (Murilo Sales e Ronaldo Foster, 1971) a Também somos irmãos (José Carlos Burle, 1949), longa-metragem recém-restaurado pela Cinemateca Brasileira. No primeiro, um retrato íntimo desse homem de muitos nomes,[1] recorte que se confunde com as imagens cristalizadas pelos seus filmes, com o que a imprensa enunciava sobre ele e com as assimetrias e hierarquias de poder que marcaram suas experiências de vida e trabalho. Já no segundo, ao lado de Aguinaldo Camargo, ator proeminente do Teatro Experimental do Negro (1945-1964), e de outros nomes do coletivo teatral, político e pedagógico, se apresenta num dueto/duelo em que a contradição e a errância aparecem como linguagem. O desvio é ferramenta de sobrevivência, e a liberdade se dá por meio de decisões desprezíveis, moralmente questionáveis. Ascensão e queda encontram pesos equivalentes. Raça e classe operam como vetores de disputas.
“Acho que o erro está todo dentro de mim", diz Grande Otelo, em tom confessional. Sua trajetória no campo das artes brasileiras parece se dar, sobretudo, a partir de uma infindável busca. Esse ator de fronteira, como diz Deise Santos de Brito,[2] destaca-se por ocupar, ao mesmo tempo, lugares distintos, em viver temores e audácia, enunciar e cantar as palavras em múltiplas significâncias, com língua bifurcada, esquivando-se de pertencer de forma estática. Em suas atuações e interpretações musicais, há lirismo e zombaria, risco e equilíbrio, cômico e erudito, “uma confusão fértil no lugar da mera representação”.[3]
O programa será comentado pelos programadores da Sessão INDETERMINAÇÕES e é acompanhado por um texto crítico da pesquisadora Cynthia Ferreira, que combina pesquisa histórica com análise fílmica, em direção à performance de um ator inesquecível. A vinheta da sessão é assinada pela artista visual e cineasta Darks Miranda.
O colorido e o preto e branco dos filmes em exibição se recombinam em ambiguidades, criando inflexões que nos levam a caminhos desconhecidos e, por assim dizer, indecifráveis.
[1] HIRANO, Luis Felipe Kojima. Grande Otelo: um intérprete do cinema e do racismo no Brasil (1917-1993). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.
[2] BRITO, Deise Santos de. Um ator de fronteira: Uma análise da trajetória do ator Grande Otelo no teatro de revista brasileiro entre as décadas de 20 e 40. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, 2011.
[3] ROSA, Allan da. “Apresento o meu amigo! O que ele merece?”: Lábia, estéticas afrodiaspóricas, jogo e convivialidade entre negros de São Paulo. Mecila Working Paper Series, n. 78, São Paulo: The Maria Sibylla Merian Centre Conviviality-Inequality in Latin America, 2024.